“O Boca Juniors não treinou pênaltis, essa ”. Não lembro quem foi o autor da frase, mas estava na transmissão da Fox Sports e foi no momento exato em que Juan Román Riquelme pegou a bola, com o relógio anotando 43 minutos do segundo tempo, três jogadores xeneizes correndo na direção de quatro jogadores do Fluminense em uma defesa absolutamente adiantada. O Engenhão gelou naquele preciso momento, mas o narrador continuou falando. O Engenhão gelou, o espectador prestou atenção, quem jantava largou o garfo, quem bebia largou o caneco, quem escrevia parou os dedos, e a defesa do Fluminense, de certa forma, previu o pior.
Previu o pior de tal forma que o chute desferido por Rivero não era exatamente difícil, mas uma batida bizarra no zagueiro tornou-se uma defesa ainda mais bizarra do goleiro e a bola ficou lá, pipocando defronte a área, enquanto um jogador do Flu, estranhamente, observava a rede e não olhava para trás. Se olhasse para trás, veria Santiago Silva, que chegou como o Tanque que é, atropelando o ar para chutar em direção ao gol. Santiago Silva não estava na área reclamando, esperando a bola certa chegar, se jogando, chorando, ganindo ou pedindo para mais incentivo da torcida para dar aquele chute na bola; ele simplesmente estava lá, e deu aquele chute.
Como Clint Eastwood, que disse recentemente que todos viramos mariquinhas porque pensamos “como lidar psicologicamente com isso”. Santiago Silva não precisou lidar psicologicamente com o fato de que o seu time foi dominado pelo Fluminense e não jogou absolutamente nada nos 87 minutos anteriores à bola de Juan Román Riquelme. Santiago Silva, de alguma forma, leu os hieroglifos indecifráveis que estavam escritos no ar do Engenhão, e que confundiram o lateral que não o viu chegar. Santiago Silva, enfim, estava lá, e não perdeu tempo pensando. Estava lá e marcou o gol de empate, o gol da classificação.
Muito provavelmente o filme que teve como protagonista o Olímpia e Ever Hugo Almeida, em 1989, passou diante dos olhos de Abel Braga. Aquele jogo aconteceu em um dia 17 de maio, hoje é 23, mas o primeiro gol saiu de um Dacroce tão improvável quanto foi Carleto, e foi igualmente um belo gol. O Deus Xiri-Pah parecia estar presente e ao lado do tricolor, mas havia algo em Thiago Neves. Não sei explicar: jogou bem, adonou-se do meio-campo, mas parecia faltar o horror, a sombra, a bruxaria decisiva de alguém decisivo. Bruxaria que ele teve no Maracanã, quando confinou Cevallos ao purgatório do seu canto esquerdo e decretou o placar necessário para levar aos penais – fatalmente, perdeu. Faltava sangue em Thiago Neves, apesar do seu bom jogo.
Não faltou sangue em Juan Román Riquelme.
É curioso observar, difícil explicar, necessário crer, que Riquelme seja capaz de tamanha bruxaria. Um passe seu, aparentemente não muito complicado, foi parar nos pés de Rivero. O passe parecia carregado pelos búzios de Exu, mas como os orixás foram carregados junto com os negros argentinos na gripe de 1918, ficamos com algum santo católico por aí. Riquelme foi o melhor do mundo em 2001, quando era promessa; foi símbolo da derrocada pós-Bianchi, ao sair; foi melhor da América em 2007, já sacerdote; foi artífice da nova derrocada, ao brigar com Palermo e lotear o time para si. Palermo aposentou-se, mais da metade do time foi embora, e o sacerdote estava lá, pregando, carregando a cruz azul e ouro em direção ao enorme povo boquense. Foi campeão, no ano passado. Foi símbolo, contra o Unión Española. Nesta noite, só deu um passe.
E que passe.
Falei, eu, da morte do grande Boca em 2009, e esse grande Boca revive como uma fênix, com Riquelme e o quarentão Schiavi, que já era ex-jogador há cinco anos. É difícil explicar, mas tentemos: sangue não é água, vencedores seguem sendo vencedores, e ainda que a fila ande, o tempo passe, o físico acabe, a mente perturbe, quem sabe o caminho de vencer sempre vai conseguir ler o que está escrito no ar e desenhar uma façanha como essa, como se fosse simples, fácil, evidente.
O torcedor do Fluminense, por favor, não se espante: seu time voltará, talvez menos talentoso, mas certamente mais cascudo, e a cada Libertadores traça de uma forma diferente o que um dia poderá ser uma vitória. Abel soube traçar esse caminho. Sigam andando.
O Boca, esse preto velho da Libertadores, que sorri mascando um palheiro e dando as verdades no campo enquanto todos duvidamos, segue copando.
Postado originalmente no Impedimento (http://impedimento.org/2012/05/24/mais-sabe-o-boca-por-ser-velho/) pelo Luís Felipe dos Santos.
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