terça-feira, 16 de abril de 2013

Grandeza perdida em Caballito



De pendejo voy con vos, porque vos sos mi pasión
nosotros te alentamos del tablón
ustedes pongan huevo y corazón
La alegría de este barrio, nunca la voy a olvidar
cruzamos la Cordillera y copamos el Maracanã”
Maracanã, 1985. Não há registros audiovisuais que deem conta de comprovar a canção até hoje entoada, mas dizem os antigos que o Ferro Carril Oeste teria levado ao ex-Maior do Mundo mais torcida que o Fluminense pela Libertadores da América* – os dois se enfrentaram na condição de campeões de seus países um ano antes. Daí o “copamos el Maracanã”, bordão comum entre as hinchadas argentinas para proclamar a invasão de um estádio rival.
Buenos Aires, bairro Caballito, 2013. Em um sábado ensolarado, 3 mil pessoas se dirigem à tradicional cancha do Ferro. O jogo, válido pela B Nacional (segunda divisão do país), é contra o Defensa y Justicia, da cidade de Florencio Varela, província de Buenos Aires. O visitante faz 2 a 0 com enorme facilidade. Calejada, a hinchada do Ferro pede a escalação dos garotos que passam toda a partida chutando uma bola em uma reentrância da velha arquibancada de madeira: “Pongan los pibes, la puta que te parió”.
No espaço de 28 anos entre a disputa de sua segunda (e última) Libertadores e as agruras de uma interminável rotina longe da elite, o Ferro experimentou dois descensos, uma falência e um sem número de fracassos dentro e fora de campo. De potência esportiva nos anos 1980, tornou-se mero figurante das divisões inferiores. A torcida, antes grandiosa, resume-se agora aos moradores do bairro e frequentadores da sede social, exatamente no centro geográfico de Buenos Aires. Quanto aos associados, 50 mil há três décadas, hoje não passam de 10 mil.
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Tamanha decadência se deve, como de praxe, a seguidas administrações ruins. Tudo começa com o homem que fez o Ferro ser temido nos anos 1980: Santiago Leyden (1933-2002) foi presidente do clube por longos 30 anos (1963-1993), período em que o Verdolaga ganhou dois Campeonatos Argentinos (1982 e 1984) e três vices, além de conquistas no basquete (três Ligas Nacionais e três Sul-americanos) e no vôlei (12 torneios nacionais e três continentais).
Leyden ainda ergueu a tribuna de cimento do antigo estádio de madeira – que ganhou o nome de Arquitecto Ricardo Etcheverry, seu vice e responsável pelo projeto do novo setor –, um ginásio poliesportivo para 8 mil pessoas abaixo desta plateia e todo o sistema de iluminação do complexo. Fez isso tudo, mas não soube a hora de deixar o cargo. Nas palavras do torcedor e sócio Arturo, 68 anos, a explicação: “Ele foi um ser humano notável, extraordinário. Mas ficou tempo demais à frente do clube e, quando isso acontece, tudo se contamina e você se afasta da realidade”.
A situação financeira, ruim quando Leyden deixou o cargo, só fez agravar nas temporadas seguintes. O Ferro foi perdendo torcida e, ainda pior, sócios. Como parte de um contexto que também afetou as agremiações brasileiras, decaiu a importância das sedes sociais a partir dos anos 1990, minando a mais relevante fonte de receita do Ferro. Em campo, os resultados também não ajudavam. Daí para a falência completa, no começo dos anos 2000, não tardou muito. Antes mesmo de ter a insolvência decretada, o Verdolaga desceu para a segunda divisão – e para a terceira no ano seguinte. Acabou voltando para a B Nacional, mas nunca mais para a elite.
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Não mais enfrentar os cinco grandes (Boca, River, San Lorenzo, Racing e Independiente) faz muita falta, mas o que mais lamentam os torcedores do Caballito é a ausência do Clássico do Oeste, o embate contra o Vélez Sarsfield, rival com quem compartilha o ramal ferroviário que cruza a cidade do centro até o limite oeste, no bairro de Liniers. A linha de trem, por sinal, tem importância destacada para estes dois e para grande parte dos times portenhos: enquanto o Ferro foi fundado em 1904 por um grupo de 95 funcionários da companhia inglesa Ferro Carril Oeste (Buenos Aires Western Railway), o Vélez empresta seu nome da antiga estação Vélez Sarsfield, hoje Floresta – o bairro onde se fixou outro clube, o All Boys.
Para o Vélez, no entanto, a rivalidade com o Ferro já não é encarada com reciprocidade. Campeão da Libertadores e do Mundial em 1994, El Fortín foi alçado a um patamar quase único: não deixa de ser um dos tantos “clubes de barrio” de Buenos Aires (como o próprio Ferro e mais All Boys, Nueva Chicago, Chacarita, Atlanta, Huracán, Argentinos Juniors, Barracas Central, Defensores de Belgrano, entre outros), mas enfrenta de igual para igual as equipes de maior torcida e tradição – já há muito tempo e com enorme consistência. Desde 1993, foram oito títulos argentinos – só o River ganhou mais – e cinco internacionais. Além de um estádio que pode ser considerado exemplar entre as canchas portenhas, o Vélez ostenta um dos elencos mais fortes e regulares do país.
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Disso se ressente a gente do Oeste (como muitos preferem chamá-lo); para passar ao largo do abismo entre os dois clubes, a torcida prefere cultuar o passado, como se o presente nada fosse. Assistir a uma partida no antigo estádio de madeira é como voltar a tempos idos (o estado de abandono de boa parte da estrutura reforça essa impressão). O Ferro se acostumou a jogar para um público envelhecido e saudosista – além de mais enxuto, bem distante da média dos 20 mil por jogo de outrora. Perdeu-se também o caráter popular que sustenta qualquerhinchada. “É uma torcida de classe média. Você não vê pobres aqui na torcida do Ferro”, atesta Arturo.
Ele tem razão: de certo modo, o Verdolaga reflete o perfil do bairro de Caballito, repleto de novos condomínios de alto padrão, alguns dos quais cortando todo o horizonte que antes se tinha a partir do estádio. É um cenário contrastante com o que se costuma se observar na maior parte das canchas argentinas: o Arquitecto Ricardo Etcheverry fica encravado em uma zona bastante populosa, mas tranquila ao extremo. É possível caminhar pelas avenidas paralelas, incluindo a Rivadavia, a maior do país, sem se dar conta da existência de um estádio ali perto.
A cancha do Ferro (os argentinos costumam se referir aos estádios do país assim, sem levar em conta o nome oficial) merece uma descrição à parte. Erguido em 1905, em um espaço anexo à estação Caballito, é considerado o mais antigo do país ainda em atividade. Entre as tantas curiosidades que se contam a respeito, diz-se que era comum trocar jogadores por materiais de construção. A história registra ainda incêndios que o destruíram parcialmente e longos períodos de empréstimo a outros clubes portenhos – que optavam por ele devido à localização privilegiada.
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O nome de Ricardo Etcheverry só foi outorgado em 1995, em referência ao dirigente idealizador da belíssima tribuna semicoberta (de 1976) que representa a única inovação no lugar em mais de século. Como todo o restante permanece com a mesma estrutura, o estádio é conhecido por El Templo de Madera. Embora a capacidade atestada seja de 24 mil torcedores, era comum que o clube jogasse para mais de 35 mil pessoas nos anos 1980.
Hoje, o Ferro joga para plateias de, no máximo, 8 ou 10 mil pessoas – mesmo quando obrigado a mandar seus jogos em outros estádios, caso de uma partida recente contra o Gimnasia de La Plata, na cancha do Huracán. Já é notável se considerarmos as médias de público dos grandes clubes brasileiros e tem ainda mais peso porque o aguante que vem da arquibancada é tipicamente argentino: trapos pendurados, faixas por todos os lados, cantoria do primeiro ao último minuto, músicas com letras elaboradas e que fazem referências históricas – como o dia em que “coparam o Maracanã”. Convenhamos: é preciso ter muito amor para alentar um time que se acostumou às posições intermediárias da B Nacional – é atualmente o 14º em um campeonato disputado por desconhecidos como Aldosivi, Crucero del Norte, Douglas Haig e Patronato.
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Tem sido essa a rotina desde o início deste século, quando o Ferro teve a falência decretada, em um cenário agravado pela crise financeira que atingiu a Argentina (o país chegou a ter cinco presidentes em 12 dias no fim de 2001) e que também colaborou para levar à bancarrota o grande Racing Club (“No me olvido ese día/ que una vieja chiflada decía/ Que Racing no existía/ que tenía que ser liquidado”, canta La Guardia Imperial, em referência ao episódio em que a torcida evitou que um dos clubes mais vitoriosos da história encerrasse as atividades). Ao contrário do Racing, no entanto, o Ferro nunca mais conseguiu se recuperar, e as gestões seguintes apenas agravaram a situação.
A campanha fraca na temporada 2012/2013 (7 vitórias, 13 empates e 9 derrotas) evidencia a qualidade do time, abaixo da crítica. As receitas com patrocínio despencaram, e nem de longe justificam o emaranhado de desconhecidas marcas a conspurcar o uniforme verde com detalhes em roxo. É aí que um Defensa y Justicia faz o que bem entende com o clube centenário. Em meio a isso tudo, com a bola tentando rolar em um gramado irregular e enquanto se observa a paixão ainda imberbe dos pibes que correm atrás de uma outra bola, entre a arquibancada de madeira e o enferrujado alambrado, fica difícil mesmo não querer que eles entrem em campo.
Afinal, é pelos jovens torcedores que ali estão que o Ferro pode continuar a ter relevância – e eventualmente ressurgir – em um futuro não muito distante. Se ocupa ainda espaço de destaque no noticiário e no imaginário popular é porque, para além de toda a mística que o cerca, a cultura bonaerense confere aos “clubes de barrio” uma importância bem maior do que a concedida aqui no Brasil, onde os pequenos de São Paulo (vide o caso do Juventus da Mooca) e Rio foram dizimados.
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Recentemente, veio o alento de que o velho estádio de Caballito passaria por uma ampla (e, ao menos neste caso, necessária) reforma. A curva do lado oposto à Platea Sur (que concentra os barra-bravas locais) e a arquibancada central já foram parcialmente desmontadas – com capacidade reduzida, o estádio não pode receber duelos com muita torcida visitante. A promessa é que os dois setores serão reconstruídos, com cimento mesmo, a exemplo da tribuna principal. “Mas falta dinheiro e a obra está parada”, resigna-se Roberto, 57, outro que viu o auge do Ferro e agora convive com a penúria de tempos tão modernos.
Enquanto olha para os dois espaços fechados, que conferem ao lugar uma aparência de abandono, sua mente viaja: “Vocês estão construindo estádios lindos para a Copa…”, diz, sem disfarçar uma admiração pouco reflexiva sobre o que se passa hoje no Brasil. Certo mesmo é que nenhuma arena, por moderna e confortável que seja, tem a alma e a história presentes em cada tábua de madeira do velho estádio de Caballito, a três quadras do coração de Buenos Aires.
*A Libertadores/1985
A primeira fase foi disputada em quadrangulares clássicos, como acontece hoje, mas com duas diferenças essenciais: eram apenas quatro chaves e só avançava o campeão. O grupo 1 reuniu argentinos e brasileiros (a concentração de clubes de apenas dois países perdurou até o ano 2000): Argentinos Juniors e Ferro Carril Oeste, campeões argentinos do ano anterior, e Vasco e Fluminense, campeão e vice brasileiros de 1984. Campanhas idênticas fizeram os dois argentinos (quatro vitórias, um empate e uma derrota) e os dois brasileiros (três empates e três derrotas). Foi necessário então um jogo de desempate entre os clubes portenhos, na cancha do Vélez: o Argentinos venceu por 3 a 1 e partiu dali para a inédita conquista da Libertadores.
Postado originalmente no Impedimento (http://impedimento.org/2013/04/16/grandeza-perdida-em-caballito/) pelo jornalista Rodrigo Barneschi e reblogado com autorização dos mesmos.

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